POR ALEXANDRE JUNQUEIRA
Como é de conhecimento geral, as Distribuidoras adquirem a energia elétrica destinada à revenda a seus consumidores finais, de Geradoras localizadas nos diversos Estados da Federação.
No decorrer do processo de geração, transmissão e distribuição desta peculiar forma de mercadoria, verifica-se a ocorrência de consideráveis desvios denominados pela regulamentação de perdas técnicas e perdas não-técnicas de energia elétrica.
O presente estudo, como se denota pelo seu título, restringe-se a tratar da suposta incidência tributária sobre as perdas não-técnicas, também chamadas de perdas comerciais, assim definidas pela Nota Técnica 035/2007 (SRD ANEEL):
- perdas técnicas: constituem a quantidade de energia elétrica dissipada entre os suprimentos de energia da distribuidora e os pontos de entrega nas instalações das unidades consumidoras ou distribuidoras supridas. Essa perda é decorrente das leis da Física e podem ser de origem térmica, dielétrica ou magnética; e
- perdas não técnicas: apurada pela diferença entre as perdas totais e as perdas técnicas, considerando, portanto, todas as demais perdas associadas à distribuição de energia elétrica, tais como furtos de energia, erros de medição, etc. Essas perdas estão diretamente associadas à gestão comercial da distribuidora.”
O furto da energia do Sistema Elétrico, pressupõe a ligação de pontos clandestinos por fraudadores capazes de promover instalações que a desviam para pontos de entrega não conhecidos pelas Distribuidoras, que não estão cadastrados em seus sistemas de identificação de clientes e que com elas não possuem relação jurídica-comercial, de modo que esta energia desviada não é passível de ser medida e nem mesmo faturada, ao menos até que o crime e seu autor sejam efetivamente identificados[1].
Inobstante tais constatações, alguns Estados insistem em cobrar o ICMS sobre a energia elétrica desviada por conta da prática do crime de furto (o popular “gato”), por considerarem que, diante deste advento, haveria ocorrido o que convencionaram chamar de interrupção do diferimento em relação à operação que qualifica as Distribuidoras como substitutas tributárias da Geradoras.
No entendimento do Fisco, o furto de energia elétrica acarretaria na interrupção da operação diferida – de compra e venda entre Geradoras e Distribuidoras – e, neste caso, o ICMS passaria a incidir sobre valor daquela operação, imediatamente anterior ao diferimento, de modo que a base de cálculo passaria a ser equivalente ao seu preço de aquisição, pago à Geradoras pelas Distribuidoras.
Sob tais alegações, foram lavradas autuações fiscais para a cobrança de ICMS, ao único argumento de que a mera saída da energia furtada, à luz do que define o inciso III, §1º, do art. 8º da Lei Complementar nº 87/1996[2], ensejaria seu recolhimento, tal como se a operação diferida pudesse ser confundida com alguma hipótese de isenção ou não-incidência, aplicável a operações ordinárias com mercadorias em geral.
Tais cobranças, no entanto, não têm o menor cabimento.
Não se pode olvidar, a aplicação da complexa sistemática de apuração do ICMS à energia elétrica merece cautela, especialmente em razão de suas características físicas que a ela conferem uma peculiar forma de comercialização.
E, como se pretende demonstrar a seguir, o sistema constitucional brasileiro cuidou disso, de modo que, se analisada com alguma profundidade, é possível averiguar que a tributação pelo ICMS não incide sobre a energia elétrica desviada por conta de seu furto, hipótese em que o contribuinte de direito, as Distribuidoras, sequer receberam a contrapartida ao consumo da energia desviada.
2. O ASPECTO TEMPORAL DO ICMS SOBRE A ENERGIA ELÉTRICA E A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DA CONSTITUIÇÃO
É pacífico o conceito de que a energia elétrica é uma espécie peculiar de mercadoria, sendo inclusive objeto do crime de furto incerto no § 3º do artigo 155 do Código Penal[3].
Uma vez produzida, a energia elétrica é instantaneamente disponibilizada a um só tempo como corpo e onda, pelo sistema que integra sua geração, transmissão e distribuição, para chegar a uma velocidade de cerca 300.000 Km/s até os consumidores-finais;
Assim, ela circula constante e instantaneamente por este sistema, de modo que não pode ser estocada, na medida em que seu consumo ocorre no mesmo tempo em que é produzida.
Diante destas peculiaridades físicas e comerciais, o sistema constitucional pátrio sempre previu uma forma especial de tributação para a energia elétrica, levando em consideração as especificidades de uma cadeia de circulação instantânea e que não pode ser fracionada.
Assim é que, desde a Constituição Federal de 1969, já se previa sua tributação por meio de um imposto único, naquela ocasião, de competência da União Federal, numa clara intenção do legislador constituinte em garantir que as operações com energia elétrica fossem tributadas em um momento único, quando de seu consumo.
“Art. 21. Compete à União instituir imposto sobre: (…)
VIII – produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica, imposto que incidirá uma só vez sobre qualquer dessas operações, excluída a incidência de outro tributo sobre elas;”
A interpretação histórica da norma constitucional e do sistema tributário, leva à constatação de que a energia elétrica desde sempre foi tributada no momento em que ocorreu o seu efetivo consumo, sendo este o aspecto temporal de sua hipótese de incidência.
Com efeito, de há muito a tributação da energia elétrica já se dava sob a forma de um imposto que recaía unicamente sobre o seu consumo. A Lei nº 4.625 de 1922[4] já prescrevia a cobrança de cinco réis sobre cada quilowatt/luz e de dois réis sobre cada quilowatt/força, efetivamente consumidos. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 2.281 de 1940[5], que isentava as empresas geradoras e distribuidoras de energia elétrica de impostos federais, estaduais ou municipais, ressalvou, de forma expressa, a incidência do imposto sobre o consumo de energia. Também o Decreto nº 41.019 de 1957[6], o conhecido “Código de Águas”, veiculou regra semelhante.
O Decreto-Lei nº 7.219 de 1944, que dispunha sobre o “Imposto sobre o Consumo”, estipulava sua incidência sobre o consumo mensal de energia elétrica, nos seguintes termos:
“Art. 1º O imposto de consumo incide sobre os seguintes produtos nacionais ou estrangeiros, discriminados nas Tabelas anexas: (...)
VIII – Eletricidade.
O imposto incide sobre:
Consumo de luz e força elétricas (…)
Imposto de 3% sobre as importâncias cobradas mensalmente pelo consumo de eletricidade.”
O Decreto-Lei n.º 2.308 de 1954 deu origem ao imposto único sobre o consumo sobre energia elétrica, cujo recolhimento deveria se dar pelo próprio usuário, prevendo o seguinte:
“Art. 3º A energia elétrica entregue ao consumo é sujeita ao imposto único, cobrado pela União sob a forma de imposto de consumo, pago por quem a utilizar.”
Em seguida, esta exação foi substituída pelo antigo “Imposto sobre Operações Relativas a Combustíveis, Lubrificantes, Energia Elétrica e Minerais do País”, com o art. 74 do Código Tributário Nacional, que, de igual modo, houve por estabelecer como aspecto temporal de sua hipótese de incidência o efetivo consumo da energia elétrica, por meio de sua disponibilização ao consumidor final. Veja-se:
“Art. 74. O imposto, de competência da União, sobre operações relativas a combustíveis, lubrificantes, energia elétrica e minerais do País tem como fato gerador: (…)
V – o consumo, assim entendida a venda do produto ao público.
§ 1º Para os efeitos deste imposto a energia elétrica considera-se produto industrializado.
§ 2º O imposto incide, uma só vez sobre uma das operações previstas em cada inciso deste artigo, como dispuser a lei, e exclui quaisquer outros tributos, sejam quais forem sua natureza ou competência, incidentes sobre aquelas operações.”
E continua assim até os dias atuais, havendo a tributação da energia elétrica passado à competência tributária dos Estados, através do ICMS[7].
A Constituição Federal de 1988, por meio do §9º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, determinou que as operações com energia elétrica sejam tributadas no momento em que ela é distribuída aos consumidores finais, calculado o ICMS sobre o preço então praticado nesta operação, a saber, o valor efetivamente faturado a estes consumidores. E definiu, especialmente, que estas operações se darão sob o regime da substituição tributária[8], tal se depreende da breve leitura do mencionado dispositivo constitucional que assim prevê:
“Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, e pelas posteriores. (…)
§ 9º Até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação.”
Está lá no §9º do art. 34, em letras frias: o ICMS será devido por ocasião da entrega da energia elétrica aos consumidores finais, clientes das empresas Distribuidoras, calculado sobre o preço então praticado nesta operação.
Note-se que o sistema constitucional pátrio sempre cuidou para que as operações com energia elétrica somente fossem tributadas quando esta fosse efetivamente distribuída para os consumidores finais, especialmente no caso do caso do ICMS, já que esta seria a única sistemática plausível a uma espécie de mercadoria que sequer poderia ser estocada, inexistindo hiato entre a sua produção e o seu consumo.
Eis que se pode facilmente constatar que, no caso da energia elétrica, a complexa sistemática de apuração do ICMS jamais comportaria sua tributação fracionada, alcançando momentos distintos da relação de consumo.
Esta é a razão do diferimento, a imputar às distribuidoras a responsabilidade pelo pagamento do imposto incidente na operação anterior (venda geradora-distribuidora).
A própria Constituição Federal definiu que as operações com energia elétrica fossem tributadas por meio da técnica do diferimento, pela aplicação do regime da substituição tributária regressiva ou “para trás”, justamente para garantir que o imposto incidisse a um só momento (quando de seu consumo) e se destinasse, por esta razão, àquele Estado onde a energia elétrica foi efetivamente consumida.
Ressalte-se que este é inclusive o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que ao interpretar o artigo 155, §2º, X, b, da Constituição de 1988 quando do julgamento do RE nº 198.088/SP[9], consignou que a totalidade do produto da arrecadação do ICMS sobre as operações com energia elétrica pertence ao Estado onde se verificou o seu efetivo consumo. De certo, o ICMS não incidirá sobre operações interestaduais que destinem energia elétrica a outros Estados, conforme se infere da breve leitura deste dispositivo:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:(…)
§2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (…)
X – não incidirá: (…)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;”
Por ocasião do mencionado julgamento, o Exmo. Ministro Ilmar Galvão, na qualidade de Relator do caso vertente, tratou da exegese do artigo 155 da Constituição Federal em consonância com o comando inserto no §9º do artigo 34 do ADCT, para asseverar que a incidência do ICMS a uma única só vez, deve alcançar tão somente a operação final de distribuição da energia elétrica a seus consumidores finais, em substituição às demais etapas de sua cadeia de produção, como se vê por este breve excerto do julgado:
“O dispositivo constitucional transcrito não discrimina entre operação interestadual destinada a contribuinte do ICMS e operação interestadual destinada a consumidor. (…)
Para assegurar a arrecadação do ICMS incidente sobre as operações alusivas à energia elétrica destinada a consumidor final em outro Estado, proveu o próprio legislador constituinte, no parágrafo 9° do artigo 34 do ADCT, neste sentido: (…)
Aliás, o dispositivo transcrito, ao regular, transitoriamente, o ICMS sobre energia elétrica (“até que a lei complementar disponha sobre a matéria”), na verdade, demonstra o acerto do que acima ficou dito sobre a inocorrência, no caso, de imunidade, posto que prevê a incidência do tributo, em caráter definitivo, no Estado de destino.”
Tem-se que, da análise dos citados dispositivos constitucionais, pode-se extrair a seguintes balizas: (i) trata-se de disposição transitória ainda vigor; (ii) a disciplina em questão aplica-se restritivamente à energia elétrica; e (iii) às distribuidoras foi atribuída responsabilidade pelo tributo nas diversas operações efetuadas ou que venham a ocorrer.
Registre-se que a legislação complementar de regência repete o comando dos citados preceitos constitucionais, para fazer menção ao instituto da substituição tributária, bem como determinar que a tributação somente ocorra no momento em que haja circulação jurídica entre as Distribuidoras de energia elétrica e o consumidor final. É exatamente o que diz a Lei Complementar nº 87/1996:
“Art. 9º A adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados.
§1º A responsabilidade a que se refere o art. 6º poderá ser atribuída: (…)
II – às empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, nas operações internas e interestaduais, na condição de contribuinte ou de substituto tributário, pelo pagamento do imposto, desde a produção ou importação até a última operação, sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na operação final, assegurado seu recolhimento ao Estado onde deva ocorrer essa operação.
§ 2º Nas operações interestaduais com as mercadorias de que tratam os incisos I e II do parágrafo anterior, que tenham como destinatário consumidor final, o imposto incidente na operação será devido ao Estado onde estiver localizado o adquirente e será pago pelo remetente.”
Este arcabouço legal, portanto, determina que o ICMS incida apenas no ato da circulação jurídica da energia elétrica, que se dá por meio de sua contratação e efetivo fornecimento ao consumidor final, inexistindo qualquer previsão legal que sustente a sua incidência sobre as demais etapas de sua cadeia de circulação ou, como pretendem alguns Estados, sobre a operação de aquisição de energia elétrica pelas Distribuidoras, diretamente das Geradoras.
3. A AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL PARA A INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE A ENERGIA FURTADA E A TIPICIDADE CERRADA
Como inicialmente demonstrado, não há previsão legal que sustente a incidência do ICMS sobre operações anteriores à atividade de distribuição de energia elétrica ao consumidor final. E, da mesma forma, não há previsão legal para que o ICMS incida sobre a operação de aquisição de energia elétrica pelas Distribuidoras, ou para que o imposto seja cobrado sobre qualquer outro momento de seu processo de produção, seja na geração ou na transmissão.
A obrigação tributária decorre invariavelmente de lei, que detém competência exclusiva para a definição do fato gerador, da base de cálculo, das alíquotas incidentes e respectivas hipóteses de incidência, nos exatos termos do artigo 97 do Código Tributário Nacional[10].
Não há dúvidas, qualquer pretensão dos Estados para a instituição ou cobrança de tributos deve se dar nos exatos termos da lei, de modo a cobrança tributária somente poderá subsistir se o fato jurídico a ela referente estiver perfeitamente enquadrado na descrição contida na hipótese de incidência, em estrito respeito aos princípios constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva e do não-confisco. Não fosse assim, os Estados ver-se-iam autorizados a auferir valores que não lhes pertencem, que não lhes dizem respeito, arrecadados em discordância com preceitos constitucionais tributários, como o é o caso da incidência do ICMS sobre valores relativos à energia elétrica furtada, desviada clandestinamente do sistema elétrico.
Por força destes princípios constitucionais, a aplicação do fato à norma tem que ser completa e o evento ocorrido no mundo fenomênico deve satisfazer, obrigatoriamente, a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese normativa, sob pena de não se configurar a incidência tributária. Este é o entendimento pacífico da doutrina, conforme se verifica por estas breves e elucidativas palavras de Alberto Xavier[11], in verbis:
“(…) esta distinção permite compreender claramente porque a definição de base de cálculo é, por força do princípio da legalidade, de reserva absoluta de lei formal ou da tipicidade, matéria da competência privativa do Poder legislativo, enquanto a determinação da base imponível é matéria da competência do Poder Executivo.”
Sob este viés albergado pela Constituição, Donovan Mazza[12] Lessa conclui com muita clareza:
“A gênese da obrigação tributária está umbilicalmente ligada à lei, pois somente a lei que pode instituir o tributo, e é somente com base na lei que a Administração pode exigi-lo. Como já há muito observado pelo Professor Sacha Calmon, o princípio da legalidade no direito tributário é princípio fundante das principais garantias do contribuinte. Em seu Curso de Direito Tributário Brasileiro, o mestre baiano de coração mineiro leciona que a “anterioridade, ou anualidade, ou lapso temporal (princípio da não-surpresa do contribuinte), tipicidade (especificação do conteúdo da lei tributária) e irretroatividade (negativa de efeito retrooperante à lei) são sub-princípios que florescem do tronco robusto do princípio da legalidade ao longo da história.”23 Indo além, o Professor demonstra que o princípio da legalidade deve ser atendido no plano formal (com ato normativo emanado do poder legislativo) e material (com a previsão de todos os elementos estruturais do tributo)24. Por esta razão, no direito brasileiro o princípio da legalidade transmuta-se em princípio da tipicidade fechada, no qual toda a regra-matriz da tributação deverá estar descrita em lei.”
Este também é o entendimento pacífico da jurisprudência sobre tema, ao apontar a invalidade de atos administrativos praticados para a cobrança de tributos sem motivação ou respaldo na legislação vigente, baseados em meras presunções, como se vê pelas ementas dos seguintes julgados[13]:
“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA PESSOA JURÍDICA. CONSOLIDAÇÃO DE BALANCETES MENSAIS NA DECLARAÇÃO ANUAL DE AJUSTE. CRIAÇÃO DE DEVER INSTRUMENTAL POR INSTRUÇÃO NORMATIVA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA. COMPLEMENTAÇÃO DO SENTIDO DA NORMA LEGAL. (…) É de sabença que, realçado no campo tributário pelo art. 150, I, da Carta Magna, o princípio da legalidade consubstancia a necessidade de que a lei defina, de maneira absolutamente minudente, os tipos tributários. Esse princípio edificante do Direito Tributário engloba o da tipicidade cerrada, segundo o qual a lei escrita – em sentido formal e material – deve conter todos os elementos estruturais do tributo, quais sejam a hipótese de incidência – critério material, espacial, temporal e pessoal -, e o respectivo conseqüente jurídico, consoante determinado pelo art. 97, do CTN. Recurso especial provido.”
É exatamente o caso das malfadas cobranças de ICMS sobre a energia elétrica objeto de furto, que sem qualquer respaldo legal, pretendem que o imposto alcance operação estranha á incidência à hipótese de incidência prevista em lei, sobre base de cálculo inexistente (calculada sob o preço da operação de venda da energia pelas Geradoras as Distribuidoras) e em patente desrespeito ao §9º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Pudera, o ICMS, como ensina Roque Antônio Carrazza[14], só incidirá sobre a energia elétrica objeto de comercialização entre Distribuidoras e consumidores finais, de modo que, para que haja incidência, na basta a circulação da mercadoria, mas é imprescindível que esta circulação decorra de uma operação jurídica que indicará, via de regra, sua base cálculo oponível:
“A base de cálculo possível do ICMS incidente sobre energia elétrica é o valor da operação da qual decorra a entrega desta mercadoria (a energia elétrica) ao consumidor. Noutro giro, é o preço da energia elétrica efetivamente consumida, vale dizer, o valor da operação da qual decorra a entrega desta mercadoria ao consumidor final. Isso corresponde, na dicção do art. 34, §9º, do ADCT, ao preço então praticado na operação final”.
É inadmissível a incidência do ICMS na hipótese de furto, simplesmente porque tais operações sequer possuem caráter negocial.
Há disposições legais específicas e de índole constitucional que regulam a incidência do ICMS sobre a distribuição de energia elétrica. Assim ocorrendo o furto, em etapa anterior à circulação jurídica e à venda aos consumidores, vê-se que nessa “operação” não há a “saída” eleita pela legislação como ensejadora da incidência do ICMS. E, conforme dispõe o §9 do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, as empresas distribuidoras de energia elétrica são as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, pelo pagamento do ICMS, o qual é calculado sobre o preço então praticado na operação final.
4. A INOCORRÊNCIA DO FATO GERADOR DO ICMS-ENERGIA ELÉTRICA NA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA “PARA TRÁS”, EM CASO DE FURTO
De acordo com o artigo 155, inciso II, da Constituição Federal[15], em consonância com o artigo 12, inciso I, da Lei Complementar nº 87/96[16], o fato gerador do ICMS, pela regra geral, é a saída de mercadoria do estabelecimento do respectivo contribuinte. A regra especial está na comercialização de energia elétrica, porquanto, neste caso, o que absolutamente não se verifica na hipótese em que há o seu furto.
Tanto o §9 do art. 34 da ADCT, quanto o inciso II, §1º, art. 9º da Lei Complementar nº 87/1996, sempre fazem menção ao instituto da substituição tributária ao tratar da hipótese de diferimento nas operações com energia elétrica, cuja transferência por responsabilidade só ocorre quando a mercadoria chega ao seu revendedor e é por ele revendida, bem como determinam que a tributação ocorra no momento em que haja circulação jurídica entre as Distribuidoras de energia elétrica e o consumidor final.
O fornecimento regular da energia elétrica e o preço praticado na operação de sua distribuição ao consumidor final, são elementos indissociáveis da hipótese de incidência, de modo que pode-se afirmar com propriedade que não há circulação jurídica quando as empresas distribuidoras veem-se impedidas de faturar por conta a ocorrência de furto. Roque Antonio Carraza[17], neste mesmo sentido, assentou de forma elucidativa:
“O elo existente entre a usina geradora e a empresa distribuidora não tipifica, para fins fiscais, operação autônoma de circulação de energia elétrica, é, na verdade, o meio necessário à prestação de um único serviço público, ao consumidor final, abrindo espaço à cobrança, junto a este, de um único ICMS. (…)
Enfatiza-se que este tributo incide sobre a realização de operações relativas à circulação de energia elétrica (que, tornamos a dizer, pelo menos para fins tributários, foi havida pela Constituição como modalidade de mercadoria). E tal circulação só pode ser jurídica; não meramente física.”
Na mesma linha de entendimento, Paulo de Barros Carvalho, de forma didática e conclusiva, assim definiu[18]:
“Para que se dê a tributação pelo ICMS, não basta a circulação da mercadoria: é imprescindível que essa circulação decorra de uma operação jurídica. Do mesmo modo, a realização de um serviço comunicacional não suficiente para que fique configurado o fato jurídico tributário do referido imposto, sendo necessário que tal prestação decorra de um negócio jurídico. Esse o motivo porque, nas hipótese em que o fornecimento de energia elétrica é decorrente de furto ou de qualquer outra espécie de fraude, inadmissível a exigência do ICMS relativamente a tais fatos, uma vez que carentes daquele imprescindível caráter negocial.”
A pretensão do Fisco em fazer incidir o imposto sobre a energia furtada, ao argumento de que a mera saída da energia elétrica ensejaria seu recolhimento, menoscaba conceitos jurídicos basilares, em patente desrespeito a princípios constitucionais inafastáveis.
Ora, não demanda maiores esforços para se concluir que na prática do crime de furto de energia elétrica, sua circulação ocorre por conta de seu desvio do sistema elétrico sem que haja transferência de sua titularidade por conta de fato econômico provido de qualquer tipo de relevância jurídica.
A circulação jurídica de mercadorias passível de incidência do ICMS, pressupõe a transferência de titularidade com o respectivo faturamento e a emissão de documento fiscal, baseados em negócio jurídico firmado entre as partes, com o pagamento da contrapartida a seu efetivo consumo em respeito ao princípio da não-cumulatividade.
Este é inclusive o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que, ao analisar a incidência do ICMS sobre tais operações, concluiu que “furtada a energia antes da entrega a consumidor final, não ocorre o fato gerador do imposto, sendo impossível sua cobrança com base no valor da operação anterior, vale dizer, daquela realizada entre a empresa produtora e a distribuidora de energia”. É o que se depreende dos seguintes trechos extraídos da ementa[19]:
“TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. FURTO ANTES DA ENTREGA A CONSUMIDOR FINAL. NÃO INCIDÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE SE COBRAR O IMPOSTO COM BASE NA OPERAÇÃO ANTERIOR REALIZADA ENTRE A PRODUTORA E A DISTRIBUIDORA DE ENERGIA.
1. Resume-se a controvérsia em definir se a energia furtada antes da entrega a consumidor final pode ser objeto de incidência do ICMS, tomando por base de cálculo o valor da última operação realizada entre a empresa produtora e a que distribui e comercializa a eletricidade.
2. Conforme posição doutrinária e jurisprudencial uniforme, o consumo é o elemento temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica, sendo o aspecto espacial, por dedução lógica, o local onde consumida a energia.
3. A produção e a distribuição de energia elétrica, portanto, não configuram, isoladamente, fato gerador do ICMS, que somente se aperfeiçoa com o consumo da energia gerada e transmitida.
4. Assim, embora as fases anteriores ao consumo (geração e distribuição) influam na determinação da base de cálculo da energia, como determinam os arts. 34, § 9º, do ADCT e 9º da LC 87/96, não configuram hipótese isolada e autônoma de incidência do ICMS, de modo que, furtada a energia antes da entrega a consumidor final, não ocorre o fato gerador do imposto, sendo impossível sua cobrança com base no valor da operação anterior, vale dizer, daquela realizada entre a empresa produtora e a distribuidora de energia.
5. O ICMS deixa de ser devido nos casos em que se perde por “vazamentos no sistema ou em decorrência de ilícito (furto), pois não havendo consumo regular, ausente se acha a operação de energia elétrica sob o aspecto jurídico tributário.
6. Recurso especial não provido.”
O v. acórdão acima citado assentou com propriedade que, “em caso de quebra da cadeia de circulação de energia, o regime de diferimento é interrompido, devendo o ICMS ser cobrado levando em consideração apenas o valor da última operação de energia elétrica”.
E não poderia ser outra a conclusão se, o diferimento, in casu, se dá pela técnica da substituição tributária. Como dito alhures, se a energia elétrica produzida pelos estabelecimentos geradores – posteriormente furtada -, não pode ser revendida pelas empresas distribuidoras, então não ocorreram os fatos descritos na hipótese de incidência do ICMS para tais operações e não há fato gerador da obrigação tributária cuja responsabilidade fora transferida por substituição.
Noutras palavras, ainda que se pudesse considerar a simples saída da energia elétrica da Geradora (a substituída), como sendo o momento da ocorrência do fato gerador, o que importa é que o momento de atribuição de responsabilidade à Distribuidora (a substituta), só nasce quando a energia elétrica lhe chega e é por ela revendida. Não a recebendo, portanto não a revendendo, não há fato gerador da obrigação tributária objeto da substituição a que faz menção a Constituição e a legislação complementar federal.
E, se não foi a Distribuidora que deu saída à energia elétrica, sob a condição a ela atribuída pelo legislador constituinte de contribuinte de direito do ICMS, a grandeza econômica necessária à incidência do imposto sequer existe.
5. O FATO JURÍDICO TRIBUTÁRIO E A AUSÊNCIA DE SIGNO PRESUNTIVO DE RIQUEZA
É requisto fundamental para a caracterização de tributos de natureza indireta – especialmente para aqueles que se filiam à teoria da repercussão jurídica obrigatória do ICMS, como é o caso do autor que se atreveu a escrever este breve artigo -, a pré-existência de duas figuras indissociáveis à conexão do negócio jurídico factual descrito na hipótese de incidência: o contribuinte de direito e o contribuinte de fato, necessariamente identificáveis.
A existência destas duas figuras jurídicas, no caso do ICMS, configura a evidente intenção do legislador constitucional (que ecoa na legislação federal complementar) em garantir que a repercussão jurídica do ônus tributário autorize ao sujeito passivo da respectiva obrigação (o contribuinte de direito) a exigir de terceira pessoa (o contribuinte de fato) o seu correspondente reembolso. É exatamente como leciona Paulo de Barros Carvalho[20]:
“Com efeito, o legislador, ao autorizar a repercussão jurídica de determinado tributo, cria duas normas jurídicas: (i) uma, tendo por hipótese de incidência a realização de determinados fatos que, ocorridos, ocasiona o nascimento da obrigação tributária; (ii) outra, em que hipótese consiste na realização daquele mesmo fato previsto no antecedente da regra-matriz de incidência tributária, mesmo fato previsto no antecedente da regra-matriz de incidência tributária, prescrevendo, no consequente, o ressarcimento equivalente ao imposto devido.
O Professor Paulo de Barros ainda completa, concluindo que “nos tributos em que há previsão jurídica de repercussão, portanto, a incidência da regra-matriz, com o consequente nascimento da obrigação tributária, acarreta o surgimento de segundo liame jurídico, em cujo polo ativo figura aquela pessoa que fora contribuinte da obrigação tributária e, no polo passivo, um outro sujeito que deverá ressarci-lo relativamente ao tributo pago. Logo, o conteúdo dessa segunda relação jurídica consiste num direito de crédito do “contribuinte de jure”, contra o tradicionalmente denominado “contribuinte de fato”[21]”.
O que se pretende dizer com isso é que, embora haja duas relações jurídicas distintas, tal como explicado acima, ambas são determinantes para a configuração da capacidade contributiva como primado constitucional a ser necessariamente observado para se configurar a hipótese de incidência do ICMS, sem o que não é possível haver tributação.
A cobrança do ICMS pressupõe a repercussão jurídica de seu ônus, que não pode recair sobre o contribuinte de direito nas hipóteses em que este não tenha como repassá-lo aos consumidores finais.
A Constituição Federal, ao transferir a responsabilidade de pagar o ICMS originalmente devido pelas empresas Geradoras, às Distribuidoras de energia, pressupõe que estas reembolsarão o ônus tributário respectivo de seus clientes adimplentes, os consumidores finais da energia elétrica fornecida.
Ora, sendo a inadimplência consequência lógica da prática do crime de furto da energia elétrica, é clarividente que, nestes casos, não há capacidade contributiva ensejadora da obrigação tributária, já que as empresas distribuidoras de energia sequer poderão reembolsar os valores que pagariam, a título de ICMS, acaso o recolhesse aos cofres públicos. De fato, quando há furto, as Distribuidoras (substitutas tributarias das empresas Geradoras), impedidas de revender a energia elétrica que foi desviada, jamais poderiam recuperar os valores que suportariam se houvessem pago o ICMS que deveria, segundo a legislação de regência, necessariamente recair sobre o seu consumidor final, em patente descumprimento ao principio constitucional da não-cumulatividade, inserto no inciso I, §2º, do artigo 155[22] da Magna Carta.
Evidente que as Distribuidoras – na qualidade de contribuintes de direito por conta da substituição tributária -, jamais poderiam arcar com o ônus tributário advindo da cobrança indevida do ICMS sobre a energia furtada, posto que não haveria como, nesta hipótese, repassá-lo àqueles que efetivamente deveriam posicionar-se na condição imposta pela lei, de contribuintes de fato, então consumidores finais da energia elétrica desviada. Este entendimento, que encontra respaldo na doutrina de escol, é objeto de análise irretocável de Hamilton Dias de Souza[23], como se vê:
“(…) b) a substituição tributária só é possível se estiver em conformidade com o princípio da capacidade contributiva. Assim, é fundamental que o substituto possa ressarcir-se do valor pago a título de substituição tributária.
c) o substituto tributário há de ter vínculo com a situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária. Tal vínculo há de ser, de fato ou de direito, quer com o fato material (fato bruto) quer com a pessoa que realizou tal fato (contribuinte). Extensão do vínculo decorre da própria essência do fato gerador, espelhado por situação de fato definida em lei que, para ser suficiente a dar origem à obrigação tributária, deve ocorrer, concretamente, em todos os seus aspectos, seus pressupostos indissolúveis. (…)”
Se as Distribuidoras não receberam o quinhão pela energia elétrica que sequer forneceram, impossibilitadas de reaver o imposto que por elas não deve ser suportado, falta-lhes um pressuposto constitucionalmente previsto que torna inviável a incidência do ICMS: a capacidade contributiva. Concluir de forma diversa seria admitir, com a devida vênia, que aos Estados fosse permitido apropriar-se de valores que não são seus, provenientes de parcela da propriedade do contribuinte sem previsão legal para tal.
6. A BITRIBUTAÇÃO DE PARCELA CONSIDERÁVEL DOS VALORES DECORRENTES DO FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA
Como se sabe, a regulamentação federal que regula o Setor cuidou para que as chamadas “perdas comerciais” (não-técnicas, dentre as quais se inclui o furto) fossem contempladas na composição dos valores pagos pelos consumidores, em razão do uso dos sistemas de distribuição de energia, na medida em que são acrescidas às tarifas para fins de formação do preço final pago.
Noutras palavras, grande parte dos valores atribuídos à energia elétrica furtada compõe a tarifa de energia praticada em determinados períodos, a critério do órgão regulador, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, como forma de compensar o montante desviado por este advento. Através de metodologia específica que rege a fixação dos pleitos para a revisão tarifária[24], uma vez determinado o montante de “perdas” de energia classificadas como “regulatórias” ou “comerciais”, apuradas em determinado período, a ANEEL define o percentual a ser efetivamente incorporado à tarifa de energia elétrica com o intuito de incentivar às companhias distribuidoras a combater as causas de desvio de energia.
Esta providencial metodologia de cálculo das tarifas de uso dos sistemas de distribuição de energia elétrica, encontram-se previstas Resolução Normativa ANEEL nº 166/2005, que assim prevê:
“Art. 12. A receita requerida de distribuição será segregada em função das componentes da TUSD definidas neste artigo. (…)
§ 2º A componente da tarifa de uso dos sistemas de distribuição, correspondente ao custo do uso de redes de distribuição ou de transmissão de terceiros, denominada TUSD – Fio A, será formada pelo valor dos seguintes itens: (…)
V – perdas elétricas na Rede Básica, referentes ao montante de perdas técnicas e não técnicas. (…)
§4º A componente da tarifa de uso dos sistemas de distribuição, correspondente ao custo das perdas técnicas, é denominada TUSD – Perdas Técnicas.
§ 5º A componente da tarifa de uso dos sistemas de distribuição, correspondente ao custo das perdas não técnicas, é denominada TUSD – Perdas Não Técnicas. (…)”
Esta mesma Resolução, traz em seu artigo 31 a definição para os valores correspondentes à energia elétrica a ser faturada, deixando claro que tanto as perdas técnicas, quanto as perdas comercias (dentre as quais , repise-se, inclui-se o furto), são contempladas – em percentuais definidos pela ANEEL – na composição dos valores pagos pelos consumidores em razão do uso dos sistemas de distribuição de energia, nos seguintes termos:
“Art. 31. As concessionárias ou permissionárias de distribuição deverão informar aos respectivos consumidores do Grupo “B”, na fatura de fornecimento, o valor correspondente à energia, ao serviço de distribuição, à transmissão, aos encargos setoriais e aos tributos, observando a estrutura de custo estabelecida neste artigo.
§ 1º O valor correspondente à energia deverá ser definido, em R$, a partir da soma dos valores faturados relativos aos seguintes itens:
I – Tarifa de Energia Elétrica – TE, exceto o item relativo a Encargos de Serviços do Sistema;
II – Perdas na Rede Básica relativa à TUSD – Fio A;
III – Perdas Técnicas; e
IV – Perdas Não Técnicas.”
Ora, se os valores decorrentes do furto são incorporados à tarifa de energia em percentuais pré-determinados e aprovados pela ANEEL, importam na inexorável conclusão de que já sofreram a devida tributação pelo ICMS.
Esta constatação inafastável já é objeto de ações judiciais em trâmite em alguns Estados, donde se verificou, a exemplo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que pretender fazer incidir o ICMS sobre a energia furtada seria o mesmo que incorrer em bitributação, como se pode averiguar por estes breves trechos dos acórdãos:
“(…) MANDADO DE SEGURANÇA ICMS. Pretensão ao afastamento da exigibilidade do ICMS incidente sobre as perdas comerciais de energia elétrica apuradas. Admisibilidade Sentença mantida. Recursos improvidos. O ICMS deve incidir sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida e desde que identificado o consumidor (…)
Destarte, alcança-se, para o efeito de cálculo de ICMS, deve ser considerada apenas a energia elétrica efetivamente entregue e consumida, com a regular identificação de seu consumidor final, sem se cogitar, portanto, a tributação da energia extraviada ou furtada. Consigne-se, ainda, estar embutido o valor dessas perdas comerciais (furtos, erros de medição e até mesmo inadimplência) no preço final da energia faturada.”[25]
***
“ICMS – Energia elétrica – Inadmissibilidade da incidência sobre perdas comerciais, decorrentes de desvios, furtos (gatos) e fraudes – Apenas com a tradição da energia comercializada, com a operação final, consistente na entrega ao consumidor, é que nasce a obrigação tributária – O ICMS deve, assim, incidir sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida, sem que a desviada ou furtada possa ser tributada, mesmo porque a Aneel já inclui na conta de luz o valor dessas perdas – Ação procedente Recursos não providos.” [26]
A pretensão de se tributar destacadamente tais parcelas (perdas não-técnicas), esbarra na proibição que o sistema jurídico-tributário alberga e veda expressamente: a dupla tributação (bis in idem), cujo impacto, se viesse a ser permitido, seria desastroso para a cadeia final de consumo de energia elétrica.
7. CONCLUSÃO
Feitas estas breves considerações, é possível chegar às seguintes conclusões:
- O sistema tributário sempre elegeu o consumo como aspecto temporal da hipótese de incidência do ICMS sobre a energia elétrica;
- Não é possível fracionar a cobrança do ICMS sobre a energia elétrica para que ele atingisse cada uma das etapas de uma cadeia de circulação que é instantânea;
- Não há previsão legal que sustente a incidência do ICMS sobre operações anteriores à atividade de distribuição de energia elétrica ao consumidor final, ou, para que ele alcance, como pretendem alguns Estados, a operação de aquisição de energia elétrica pelas Distribuidoras. Tampouco existe previsão legal para que a base de cálculo da operação seja o custo de aquisição da energia elétrica, nem para que o ICMS incida na entrada da energia elétrica no estabelecimento das Distribuidoras;
- A legislação em vigor estabeleceu a hipótese de incidência do ICMS e seus elementos indissociáveis, dentre estes sua base de cálculo, que deve ser o preço praticado na operação de distribuição da energia elétrica ao consumidor final;
- O §9 do art. 34 do ADCT e o inciso II, §1º, art. 9º da Lei Complementar nº 87/1996, sempre fazem menção ao instituto da substituição tributária, cuja transferência por responsabilidade só ocorre quando a mercadoria chega ao seu revendedor e é por ele revendida (no caso do furto, não ocorre nenhum destes eventos), bem como determinam que a tributação ocorra no momento em que haja circulação jurídica entre as Distribuidoras de energia elétrica e o consumidor final;
- O advento do crime de furto da energia elétrica acarreta na impossibilidade de recebimento dos valores devidos em razão de seu efetivo consumo, fato que, por si só, torna inexigível o ICMS por ausência de capacidade contributiva, fator indispensável à exigência tributária;
- Repassado ao valor da tarifa de energia elétrica, uma vez distribuída à coletividade de consumidores finais, o valor decorrente do furto integra a base de cálculo do ICMS regularmente recolhido pelas concessionárias distribuidoras, sendo forçoso concluir que a cobrança do imposto destacadamente sobre esta parcela, incorre em inaceitável hipótese de bitributação.
POR ALEXANDRE JUNQUEIRA
Referências bibliográficas:
[1] A materialização da irregularidade decorrente do furto de energia elétrica depende da adoção de procedimentos previstos na Resolução ANEEL nº 414/2010, sem o que não há como considerar-se válidos os valores atinentes a seu desvio, para fins de cobrança e recuperação de receita pelas Distribuidoras.
[2] Art. 8º A base de cálculo, para fins de substituição tributária, será:
(…)
- 1º Na hipótese de responsabilidade tributária em relação às operações ou prestações antecedentes, o imposto devido pelas referidas operações ou prestações será pago pelo responsável, quando:
(…)
III – ocorrer qualquer saída ou evento que impossibilite a ocorrência do fato determinante do pagamento do imposto.
[3] Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.(…)
§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.
[4] Art. 1º. A receita geral da República dos Estados Unidos do Brasil é orçada em:
- De 5 réis sobre cada Kilowatt luz e de 2 réis sobre cada Kilowatt força, ou se o regime for a forfait 5% sobre os preços arrecadados na forma que foi ptrescrita em regulamento e com isenção para o consumo mensal abaixo, em cada caso, de 20 Kilowatts, mensais 3,000.000 $000.
[5] Art. 1º – A partir de 1º de janeiro de 1940, todas as empresas que produzam ou penas transmitam ou distribuam energia elétrica ficam isentas de quaisquer impostos federais, estaduais ou municipais, salvo os de consumo, de renda e de vendas e consignações, incidindo este somente sobre o material elétrico vendido ou consignado, e os territorial e predial sobre terras ou prédios não utilizados exclusivamente para fins de administração, produção, transmissão, transformação ou distribuição de energia elétrica e serviços correlatos.
Parágrafo único – O disposto neste artigo aplica-se tanto às empresas que operam com motores hidráulicos quanto às que operam com motores térmicos.
[6] Art 109. Todas as empresas que produzam ou apenas transmitam ou distribuam energia elétrica são isentas de quaisquer impostos federais, estaduais e municipais, salvo:
a) o imposto de renda;
b) os impostos de consumo e venda mercantis que incidam sobre o material elétrico vendido ou consignado;
c) os impostos territorial e predial sobre terras e prédios não utilizados exclusivamente para fins de administração, produção, transmissão, transformação ou distribuição de energia elétrica e serviços correlatos.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se tanto às empresas que operam com motores hidráulicos quanto às que operam com motores térmicos.
[7] Assim prevê a Constituição Federal de 1998:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (…)
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (…)
X – não incidirá: (…)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;”
[8] Esta constatação merece destaque porque, ao contrário do que alegam alguns Estados, a operação diferida (de venda de energia pelas Geradoras) não é isenta , tampouco é considera operação não-tributada. Trata-se de diferimento por substituição tributária regressiva tal qual define a Constituição Federal, que resguarda às Distribuidoras seu direito ao crédito acumulado pelas Geradoras por conta das aquisições de insumos e bens para o ativo permanente, destas últimas. Estivessem os Estados corretos diante de sua pretensão, o direito a este crédito não subsistiria acaso se estivesse diante de isenção ou não-incidência.
[9] EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. IMUNIDADE DO ART. 155, § 2º, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo. Conseqüente descabimento das teses da imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que a empresa consumidora dos produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido.
(RE 198088, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2000, DJ 05-09-2003 PP-00032 EMENT VOL-02122-03 PP-00618)
[10] Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II – a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
[11] XAVIER, Alberto, Do Lançamento, Teoria Geral do Ato do Procedimento e do Processo Tributário, Ed. Forense, 2002, p.39.
[12] LESSA, Donovan Mazza, A IMPOSSIBILIDADE DA COBRANÇA JUDICIAL DE TRIBUTO JÁ DECLARADO INCONSTITUCIONAL, MESMO EM FACE DE COISA JULGADA FAVORÁVEL À FAZENDA PÚBLICA, artigo publicado em http://sachacalmon.com.br/wp-content/uploads/2012/10/Artigo-Execu%C3%A7%C3%A3o-de-tributo-declarado-inconstitucional-e-coisa-julgada.pdf.
[13] STJ, REsp 724.779/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/09/2006, DJ 20/11/2006, p. 278.
[14] CARRAZA, Roque Antonio, ICMS, Ed. Malheiros, 11.ª ed., 2006, p. 229.
[15] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…)
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;(…)
[16] Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;
[17] CARRAZZA, Roque Antonio, ICMS, Ed. Malheiros, 11ª, 2006, p. 226.
[18] DE CARVALHO, Paulo de Barros, Tributação no Setor Elétrico, Ed. Quartier Latin, 2010, p. 33.
[19] Superior Tribunal de Justiça, Segunda Turma, Relator Ministro Castro Meira, Recurso Especial nº 1.306.356/PA, unânime, DJe de 04/09/2012.
[20] CARVALHO, Paulo de Barros, Tributação no Setor Elétrico, Ed. Quartier Latin, 2010, p. 24.
[21] CARVALHO, Paulo de Barros, Tributação no Setor Elétrico, Ed. Quartier Latin, 2010, p. 24 e 25.
[22] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…)
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (…)
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
[23] SOUZA, Hamilton Dias, ICMS – Substituição Tributária, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 12, São Paulo, Ed. Dialética, p. 25 e 26.
[24] O chamado mecanismo de Reajuste Tarifário Anual tem como objetivo restabelecer o poder de compra da receita obtida por meio das tarifas praticadas pela concessionária. A receita da concessionária de distribuição é composta por duas parcelas: a “Parcela A, representada pelos custos não-gerenciáveis da empresa (encargos setoriais, encargos de transmissão e compra de energia para revenda), e a “Parcela B”, que agrega os custos gerenciáveis (despesas com operação e manutenção, despesas de capital), in http://www.aneel.gov.br/area.cfm?idArea=95
[25] Tribunal de Justiça de São Paulo, Décima Primeira Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Luis Ganzerla, Apelação nº 0001921-49.2011.8.26.0053, DJe de 24/01/2013.
[26] Tribunal de Justiça de São Paulo, Décima Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Urbano Ruiz, Apelação nº 0013820-78.2010.8.26.0053, DJe de04.07.2011.