Em artigo publicado na Gazeta do Povo, o advogado Eduardo Lourenço, sócio do Maneira Advogados, e o deputado Pedro Lupion, analisam a MP 1227 e suas implicações na regulamentação do setor agrícola.
PEDRO LUPION 07 JUNHO 2024 | 11min de leitura
Na última terça-feira (04/06), no início da tarde, todos aqueles que estão preocupados com a continuidade das atividades produtivas do Brasil foram surpreendidos com uma medida totalitária do Governo Federal. Isto porque foi editada, em edição extra do diário oficial e já com validade a partir daquele dia, a Medida Provisória 1.227/24, que tem por objeto quatro itens: (I) estabelece novas condições para a fruição de benefícios fiscais; (II) delega competência ao Distrito Federal e aos Municípios para o julgamento de autuações de ITR quando existente convênio; (III) limita a compensação de tributos administrados pela RFB; e (IV) revoga hipóteses de ressarcimento e de compensação de créditos presumidos de PIS/COFINS.
Os dois últimos itens são tão absurdos que acabam fazendo com que os primeiros, que igualmente estão repletos de controvérsias e inconstitucionalidades, fiquem de lado no noticiário e análises políticas e jurídicas.
Dada a importância e o absurdo completo da Medida Provisória, vamos, neste espaço, fixar posição sobre todos os itens.
Primeiro, então, analisemos o estabelecimento de novas condições para a fruição de benefícios fiscais. Em síntese, a MP recria a declaração de fruição de benefícios fiscais, que deve ser apresentada pelos contribuintes, sob pena de multa de até 1,5% da receita bruta. É mais uma vez o Estado passando ao contribuinte a sua tarefa de fiscalização, criando mais burocracia e custo. Esta declaração deve ser eletrônica, sendo que caberá à Receita Federal a definição sobre os benefícios fiscais a serem informados, termos, prazos e demais condições.
O texto legal traz quatro condições para a concessão, reconhecimento, habilitação, coabilitação e fruição de incentivo, renúncia ou benefício de natureza tributária objeto da declaração, a saber: (a) quitação de tributos e contribuições federais; inexistência de inscrição no Cadin; e inexistência de débitos de FGTS; (b) inexistência de sanção decorrente de atos de improbidade administrativa, penas de interdição e por atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira; (c) necessária adesão ao Domicílio Tributário Eletrônico – DTE; e (d) regularidade cadastral, nos termos do regulamento.
Inobstante a comprovação dos requisitos indicados ser feita de forma automática pela RFB, dispensada a entrega de documentos comprobatórios pelo contribuinte, a não entrega ou entrega em atraso da criada declaração de benefícios atrairá aplicação de multa, calculada aplicando percentual (progressivo de 0,5% até 1,5%) sobre a receita bruta.
Nada mais equivocado. Além de criar novas condições e obrigações, sem pormenorizar o efetivo e real alcance (quais benefícios?), a norma ainda confere ao Poder Executivo liberdade de regulamentação para além dos razoáveis. Vejam que os contribuintes que possuem benefícios fiscais devem permanecer alerta para a regulamentação e atendimento aos requisitos a todo momento, vivendo em total e constante insegurança jurídica: basta uma simples alteração no regulamento para que o Contribuinte tenha que alterar toda a sua obrigação acessória e/ou buscar atender a novos requisitos e, ao final, ainda estar sujeito a multas calculadas sobre o valor da sua receita bruta, e não sobre o benefício.
Qual a razoabilidade dessa medida? Por certo, que nenhuma. E, mais, igualmente não identificamos o preenchimento dos requisitos constitucionais da relevância e da urgência para edição de Medida Provisória. Isto é, essa matéria deveria mesmo ser objeto de Medida Provisória, que tem validade desde a sua edição e possui rito abreviado de tramitação e discussão? Entendemos que não e devemos sempre ressaltar que processos servem para que se tenha um rito na tomada de decisão, sendo indispensável a maturação da discussão e não o seu açodamento.
Essas preocupações e limitações constitucionais igualmente se aplicam para o segundo tema da MP 1227, que trouxe a delegação de competência ao Distrito Federal e aos Municípios para o julgamento de autuações de ITR quando existente convênio para o lançamento e cobrança. Expliquemos.
Neste ponto, o Poder Executivo Federal pretende, quando existir convênio com o respectivo ente para fiscalização e cobrança do ITR, transferir as ações de instrução e julgamento dos processos administrativos fiscais ao Distrito Federal ou ao Município.
Todavia, nos parece que a Emenda Constitucional nº 42/2003, que deu nova redação ao art. 153, §4º, CF, não autoriza a transferência da competência integral em relação ao tributo, mas apenas quanto à fiscalização e cobrança (“III – será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.”).
Além do mais, ainda que se assuma que a atividade processual de julgamento está inserida nas ações de fiscalização e cobrança, por decorrência dessa própria argumentação ter-se-á que aceitar a aplicação do art. 146, III, b, CF, no sentido de que cabe à lei complementar tributária estabelecer normais gerais, especialmente sobre lançamento tributário. Portanto, se uma matéria deve ser tratada por Lei Complementar, não pode ser objeto de Medida Provisória. E essa exigência de norma complementar se coaduna com outra limitação na edição de Medida Provisória: quando tratar de processo civil.
Ainda que tenhamos clareza de que a MP não cuida de processo civil, deve ser feita uma leitura do real sentido deste impedimento constitucional, que nos parece estar vinculado à necessidade de respeito ao amplo debate, insculpido no devido processo legislativo, e ao princípio da não surpresa. Aliás, relembremos que o STF, antes mesmo da inclusão da limitação de Medida Provisória tratar de matéria de processo civil (EC 32/2001) já tinha se posicionado quanto à impossibilidade desse tipo de legislação alterar norma de processo (ADI 1910).
Especificamente quanto aos dois primeiros pontos, ainda vale trazer uma passagem do voto do ministro Celso de Mello quando do julgamento da ADI 2736, na qual é ressaltada a consequência de violação à indispensável Separação dos Poderes na edição de Medidas Provisórias tais como aqui estamos analisando. Vejam:
“Eventuais dificuldades de ordem política – exceto quando verdadeiramente presentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material – não podem justificar a utilização de medidas provisórias, sob pena de o Executivo, além de apropriar-se, ilegitimamente, da mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, converter-se em instância hegemônica de poder no âmbito da comunidade estatal, afetando desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República.”
Aliás, nesse julgamento o ministro, ainda em 2010, destacou que a quantidade exorbitante de Medidas Provisórias “evidenciam que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culminou por introduzir no processo institucional brasileiro,, verdadeiro cesarismo governamental em matéria legislativa, provocando graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes (…)”.
Tudo até aqui analisado da Medida Provisória 1227 já mostra o seu absurdo, em especial pela constante tentativa de violação à Separação dos Poderes. Mas não é só e há pontos mais preocupantes.
É que, no art. 5º, foi estipulado mais uma hipótese de compensação “não declarada”, passando a vedar a chamada “compensação cruzada” do saldo credor acumulado de créditos de PIS/COFINS (não-cumulatividade) para pagamento de débitos de outros tributos administrados pela Receita Federal.
Até segunda-feira, antes da edição da referida norma, os contribuintes que tinham as suas operações desoneradas pelo PIS/COFINS em função de exportações (art. 6º, §1º, II das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03) ou suspensão/isenção e alíquota zero (art. 16 da Lei nº 11.116/05), ou, ainda, recebiam créditos presumidos, podiam utilizar os créditos para a compensação com outros tributos administrados pela Receita Federal do Brasil.
Todavia, com a alteração, os créditos somente poderão ser utilizados para quitar os próprios débitos de PIS/COFINS. Ocorre que a limitação imposta afeta diretamente contribuintes e consumidores, pois, não havendo débitos de PIS/COFINS suficientes para o escoamento, haverá contínuo acúmulo de crédito, sem a real possibilidade de sua utilização.
As inconstitucionalidades são diversas. Inicialmente, fere o princípio da não cumulatividade, porquanto o impedimento do efetivo uso traz acúmulo de resíduo tributário e, em especial aos exportadores, igualmente fere o princípio do destino segundo o qual os países exportam produtos e não tributos. Além disso, a medida acaba por confiscar crédito escriturado pelos contribuintes, que estão, desde 2018 impedidos de compensá-los com débitos de estimativa de IRPJ/CSLL e agora também estão proibidos de compensá-los com os demais tributos. Ainda, quando possível, acaba por impor aos contribuintes, como única saída, a apresentação de pedido de restituição que: (i) não tem prazo para ser analisado; (ii) mesmo que deferido, não tem prazo para ser quitado.
Ademais, devemos mencionar que há impedimento de instituição de Medida Provisória que pretenda limitar o uso de ativo financeiro, nos termos do art. 62, §1º, II, CF. O que são os créditos de tributos utilizados para quitar débitos de tributos senão ativos financeiros do contribuinte?
Por último, destaque-se que, como já dito, a nova restrição entrou em vigor já no dia da sua publicação (04/06/24), sem observância do princípio da anterioridade aplicável aos tributos. É que, embora a Medida Provisória não tenha realizado um aumento direto da carga tributária, a imprevista e abrupta proibição da compensação viola a segurança jurídica sob o viés do princípio não surpresa, afinal, os contribuintes planejaram suas atividades considerando a utilização de seus créditos considerando a legislação vigente há quase duas décadas. Sobre esse ponto específico, indicamos um artigo para leitura.
Ocorre que, além dessas limitações das compensações, a MP ainda foi mais adiante e revogou algumas hipóteses de ressarcimento e de compensação de créditos presumidos de PIS/COFINS. É que seguindo a (i)lógica da vedação da compensação tratada no item anterior, a MP, ao final, revoga algumas possibilidades de compensação de créditos presumidos de PIS/COFINS com débitos de outros tributos, bem como impede o ressarcimento, a saber: (i) produção de produtos farmacêuticos (Lei 10.147); (ii) industrialização de produtos agropecuários, inclusive cooperativas (Leis 10.925, 12.058, 12.350, 12.599, 12.794, 12.865); (iii) indústrias petroquímicas (Lei 11.196).
Ou seja, para os contribuintes que gozam de crédito presumido, a situação é ainda mais grave, pois tampouco será possível o ressarcimento em dinheiro, expressamente revogado pela MP nº 1.227/24. Na prática, as novas restrições extinguem os benefícios fiscais de crédito presumido até então concedidos, sem respeitar a anterioridade tributária. Além disso, também ferem o art. 178 do CTN, que traz a necessidade de respeito aos benefícios concedidos.
Sobre esse ponto dos créditos presumidos, devemos esclarecer que, ainda que juridicamente sejam “benefícios”, na prática não é disso que se trata, notadamente na cadeia produtiva da agropecuária e da sua respectiva indústria. Explicando rapidamente essa questão, devemos relembrar que a todo tempo é pretendida a não cumulatividade de tributos, seja para não exportar tributos, seja para não onerar as cadeias produtivas. Ocorre que algumas operações, em especial no agro, envolvem pessoas físicas, nas quais não é possível a apuração dos créditos de PIS/COFINS na operação de aquisição por indústria processadora ou exportadora, o que não afasta o fato de que os insumos do produtor rural estavam onerados pelas mencionadas contribuições. Justamente por isso que se tem o crédito presumido, que funciona como instrumento para tentar neutralizar a carga tributária na cadeia produtiva. Não é benefício, mas sim ajuste econômico de algo que foi efetivamente pago na cadeia antecedente.
Encerrando essa nossa posição, devemos pensar o que a MP 1227 tem de relação com a reforma tributária. E a resposta é clara e única: quebra de confiança.
Os defensores do novo sistema da reforma tributária afirmam que funcionará porque, dentre outros pontos, os componentes do elo produtivo serão ressarcidos dos créditos acumulados, bastando, aos contribuintes, confiar no sistema que começará em 2026. Ocorre que, como visto, a devolução e efetiva utilização dos créditos já estão encontrando obstáculos hoje e unicamente por utilização, por parte do Governo Federal, de instrumento para, quebrando a confiança legítima dos contribuintes, limitar a utilização dos seus créditos.
Parece que, enquanto uma parte do Governo tenta convencer o contribuinte de que tudo dará certo daqui um ano e meio quando começar a transição, outra parcela do mesmo Governo nos traz para a realidade mostrando que já não está dando certo e que não se pode confiar.
Em razão de todos os pontos, só podemos concluir que essa Medida Provisória deve ser devolvida pelo Congresso Nacional e, se assim não for, que será, sem sombra de dúvidas, totalmente suprimida.
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O artigo foi escrito em conjunto com Eduardo Lourenço, doutorando e mestre em Direito Constitucional pelo UniCEUB e Master of Laws (LLM) em Direito Tributário pelo IBMEC. Sócio do Maneira Advogados.