O site PETRÓLEO HOJE, da revista Brasil Energia, publicou artigo assinado pelos Drs. Eduardo Maneira, Marcos Correia Piqueira Maia e Thales Roliz, que trata do direito de as empresas de óleo e gás obterem crédito de ICMS sobre os produtos químicos que integram os fluidos de perfuração de poços.

O direito de crédito de ICMS sobre fluidos de perfuração

Por Eduardo Maneira, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutor em Direito Tributário pela UFMG e sócio do escritório Maneira Advogados; Marcos Correia Piqueira Maia, Doutorando em Direito Tributário na Universidade Complutense de Madrid e sócio do escritório Maneira Advogados; e Thales Maciel Roliz, mestrando em Direito Tributário no IBDT e sócio do escritório Maneira Advogados

No último dia 18 de abril, o Superior Tribunal de Justiça julgou um tema de extrema relevância para o setor de óleo e gás.

Trata-se do Recurso Especial nº 2.054.083/RJ, que foi interposto pelo Estado do Rio de Janeiro contra acórdão do Tribunal de Justiça que reconheceu a possibilidade de uma empresa produtora de petróleo escriturar créditos de ICMS sobre produtos químicos que integram os fluidos de perfuração dos poços. Tais fluidos, registre-se, são notoriamente indispensáveis para a consecução da atividade de exploração de óleo e gás (definida no art. 6º da Lei nº 9.478/97), sendo empregados na identificação de jazidas economicamente viáveis.

Trata-se de etapa que integra o ciclo de produção do petróleo, nos termos da citada Lei nº 9.478/97, representando um insumo absolutamente essencial para tanto. Quanto aos dois pontos acima colocados – (i) integração ao ciclo de produção e (ii) constituir um insumo essencial –, não havia maiores discussões no processo, pois ambas as partes convergiam nesse sentido.

Assim, o ponto central debatido pela Segunda Turma do STJ foi o seguinte: a caracterização de um insumo, para fins de escrituração de créditos no âmbito do ICMS, só pode ocorrer quando um determinado bem, empregado no processo de industrialização, tiver “contato físico” com o produto final?

Esse é um dos grandes temas no tocante ao ICMS, em relação ao qual a doutrina e a jurisprudência sempre oscilaram. A discussão vem se arrastando desde a edição da Constituição de 1988, pois envolve a delimitação do conceito de “insumo” para fins de efetivação do princípio da não cumulatividade insculpido no art. 155, §2º, I, da própria Carta Magna.

Existem duas correntes clássicas de pensamento acerca da extensão do direito de crédito de ICMS, que podem ser assim resumidas:

a) Há uma interpretação mais restritiva que, assim como ocorre com o IPI, admite os créditos de ICMS apenas sobre os bens que(i) se incorporam ao produto final (matérias-primas); (ii) entram em contato físico com o produto final e são consumidos no processo produtivo (produtos intermediários), e (iii) constituem os chamados materiais de embalagem. Trata-se do conhecido critério do “crédito físico”;

b) Por outro lado, há uma linha de pensamento diametralmente oposta, que entende pela possibilidade de escrituração de créditos sobre todos os bens essenciais à atividade do contribuinte, inclusive sobre aqueles que não irão “sair” do seu estabelecimento por não terem sido agregados, nem direta nem indiretamente, ao produto final. A lógica é a de que a aquisição desses bens irá sempre impactar o preço de venda a ser posteriormente tributado pelo ICMS, representando, em última análise, custo de produção ou revenda dos produtos para o contribuinte. Esse racional foi denominado de critério do “crédito financeiro”.

O STF, desde a edição da Constituição de 1988, se posiciona no sentido de que o grupo de materiais que poderia ser enquadrado como “insumo” é aquele composto pelas matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem, na linha do critério do “crédito físico” acima mencionado (RE nº 447.470 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, em 14/09/10, por exemplo).

Para além disso, segundo a Suprema Corte, só haveria direito de crédito sobre determinado bem em caso de expressa autorização do legislador infraconstitucional [1]. E foi justamente sob esse prisma que o panorama evoluiu, tendo o Superior Tribunal de Justiça assumido o protagonismo sobre a discussão.

De plano, vale fazer a seguinte observação: assim que promulgada a Carta de 1988, foi editado o Convênio nº 66/88, que disciplinou as normas gerais do ICMS em âmbito nacional – inclusive no que diz respeito à efetivação do princípio da não cumulatividade –, tendo, em seu art. 31, afirmado que “não implicará crédito (…) a entrada de mercadorias ou produtos que, utilizados no processo industrialnão sejam nele consumidos ou não integrem o produto final na condição de elemento indispensável à sua composição”.

Nota-se que a redação do art. 31 do Convênio nº 66/88 adotou uma perspectiva restritiva para o aproveitamento de créditos de ICMS para os contribuintes, a qual já se fazia presente na jurisprudência dos Tribunais Superiores.

No entanto, em 1996, o Convênio nº 66/88 foi substituído pela atual Lei Complementar nº 87. Tal diploma, diferentemente do anterior, passou a garantir, em seu art. 20, §1º, a escrituração de créditos de ICMS sobre todos os bens que não sejam alheios à atividade do estabelecimento e que não resultem em uma operação ou prestação de serviço isenta ou não tributada.

Essa importante modificação na legislação permitiu, então, que o STJ começasse a revisitar a posição histórica dos Tribunais sobre o tema. E a mudança começou a se desenhar, primeiramente, a partir de julgamentos que discutiam a possibilidade da tomada de créditos de ICMS em razão da aquisição de bens por prestadores de serviços de transporte e de comunicação.

Em 26/03/10, a Segunda Turma do STJ, ao julgar o REsp nº 1.175.166/MG, deixou consignado que o art. 20 da LC nº 87/96 teria ampliado “a possibilidade de creditamento, pois fez referência apenas à vinculação dos insumos à atividade do estabelecimento, mas não à necessidade de que eles integrem o produto final”. Com base nesse racional, entendeu que o prestador de serviço de transporte poderia se creditar de todos os bens que fossem aplicados e consumidos nos veículos de propriedade da empresa. Tal posicionamento significou, finalmente, uma superação das linhas clássicas do critério do “crédito físico”.

Em seguida, a Primeira Seção do STJ, nos autos do REsp nº 842.270/RS e do REsp nº 1.201.635/MG, analisou a discussão a respeito do direito de crédito das operadoras de telefonia sobre a energia elétrica utilizada para a consecução dos serviços de comunicação, tendo concluído que o referido produto constitui um insumo essencial para a atividade-fim das empresas, razão pela qual a sua aquisição deveria gerar o direito de crédito.

O novo racional adotado para os prestadores de serviço tributados pelo ICMS a partir da Constituição de 1988 era necessário, já que a manutenção da exigência de “contato físico” com o produto final impediria por completo a escrituração de quaisquer créditos por esse grupo de contribuintes (os quais, por óbvio, não dão “saída” a quaisquer mercadorias).

Portanto, apesar de o STF se manter fiel ao seu posicionamento quanto à constitucionalidade do critério do crédito físico [2], o STJ, a partir da interpretação do art. 20 da Lei Complementar nº 87/96, começou a dar os devidos contornos ao princípio da não cumulatividade e, com isso, a garantir o pleno direito de crédito aos contribuintes.

Ocorre que, mesmo dentro do STJ, havia uma divergência entre as decisões proferidas pela Primeira e pela Segunda Turma acerca da matéria. Com efeito, desde 2009 [3], já se via uma tendência da Primeira Turma em garantir o direito de crédito aos contribuintes, independentemente de contato físico do insumo com o produto final (o elemento principal passou a ser a indispensabilidade do bem para a consecução da atividade-fim do contribuinte).

Por outro lado, na Segunda Turma do STJ, a situação era diversa. Apesar de existirem precedentes muito lúcidos sobre o tema (como o REsp 1.331.033, que diferenciou muito bem a situação do IPI e do ICMS [4]), havia uma tendência maior à adoção do critério do crédito físico, como ocorreu, por exemplo, nos seguintes julgados: AgRg no REsp nº 738.905 (Rel. Min. Humberto Martins), de 07/02/08; REsp nº 1.808.979 (Rel. Min. Herman Benjamin), de 11/06/19; e AgInt no REsp nº 1.860.994 (Rel. Min. Francisco Falcão), de 14/11/22.

Daí vem a relevância do recente julgamento do REsp nº 2.054.083/RJ [5], realizado em 18/04/23, em que a Segunda Turma do STJ parece ter retomado o seu melhor entendimento sobre a questão e, assim, decidido por reconhecer a possibilidade de uma empresa produtora de petróleo escriturar créditos sobre os fluidos de perfuração dos poços.

Veja-se como a situação é emblemática: mesmo os fluidos de perfuração não entrando em contato com o produto final e não participando do processo de extração do óleo e do gás propriamente dito (pois é aplicado na fase de exploração), o crédito foi reconhecido pela Segunda Turma do STJ. E tal decisão se mostra irretocável, visto que a fase de exploração integra a etapa inicial do ciclo de produção do petróleo e do gás (conforme disposto na Lei nº 9.478/97), sendo os fluidos um insumo essencial e indispensável para a consecução da referida atividade-fim das operadoras de óleo e gás.

Isso o torna, portanto, ainda mais representativo. A prevalecer este entendimento (que nos parece absolutamente adequado), a caracterização de insumo, para fins de escrituração de créditos de ICMS, dependerá da comprovação de apenas dois elementos por parte dos contribuintes (sejam industriais, comerciantes ou prestadores de serviço), quais sejam: (i) que o bem adquirido tenha sido tributado pelo imposto; e (ii) que constitua um item essencial para a consecução da atividade-fim da empresa.

Apesar da importância do precedente em questão, é prudente alertar que o debate está longe de ter sido encerrado. Mesmo sabendo que o STJ vem dando passos largos ao encontro da melhor interpretação do princípio da não cumulatividade, é fato que o tema desperta muitos interesses, estando a jurisprudência do STF ainda muito centrada no critério do crédito físico. Certeza, portanto, de novos capítulos pela frente.

NOTAS:

[1] Nesse sentido, podemos citar o AI nº 685.740 AgR-ED, julgado pela Segunda Turma do STF em 31/08/10 (Rel. Min. Joaquim Barbosa).

[2] Nesse sentido, tem-se o RE nº 689.001 AgR, julgado pela Segunda Turma em 06/02/18, por exemplo (Rel. Min. Dias Toffoli).

[3] Em 06/03/07, por exemplo, a 1ª Turma do STJ, no REsp nº 762.748 (Rel. Min. Luiz Fux), afirmou que o direito de crédito se limita aos “produtos classificados como bens de insumo, que são as matérias-primas ou os produtos intermediários que, empregados no processo de industrialização, se agregam de alguma forma no produto final e, consectariamente, quando da comercialização deste são, de certo modo, repassados ao consumidor”.

Logo depois, começa-se a notar, no âmbito da 1ª Turma, a existência de julgados mais favoráveis aos contribuintes, nos quais se reconheceu que o direito de crédito está, na verdade, vinculado à utilização do bem na atividade-fim do contribuinte, sendo irrelevante o contato físico com o produto final. Foi o que ocorreu no REsp nº 1.435.626, julgado em 03.06.14, em que se reconheceu o direito de crédito na aquisição de combustível para a prestação de serviço de transporte fluvial. Da mesma forma, no AgInt nos EDcl no AREsp nº 1.394.400, julgado em 25/10/21, se autorizou o creditamento na aquisição de combustível, por empresa transmissora de energia, para a frota utilizada na manutenção de sua rede.

[4] REsp nº 1.331.033/SC, Rel. Min. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 02/04/13.

[5] “TRIBUTÁRIO. ICMS. PRODUTO INTERMEDIÁRIO. AQUISIÇÃO DE PRODUTO QUÍMICO. FINALIDADE INDUSTRIAL. ATIVIDADE FIM. APROVEITAMENTO DOS CRÉDITOS. LC N. 87/1966.

I – O Tribunal a quo, com fundamento no conjunto probatório dos autos, consignou que o produto químico utilizado pelo contribuinte é utilizado diretamente no processo produtivo, tratando-se de insumo essencial para a obtenção do produto final disponibilizado pela empresa.

II – O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento pacificado de que, a partir da vigência da Lei Complementar n. 87/1996, é legal o aproveitamento dos créditos de ICMS na compra de produtos intermediários utilizados nas atividades fins da sociedade empresária, ainda que consumidos ou desgastados gradativamente.” (Rel. Min. Franciso Falcão)

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