Em artigo publicado no site Consultor Jurídico, os advogados Marcos Correia Piqueira Maia, Michel Hernane Noronha e Thales Maciel Roliz, sócios do Maneira Advogados, tratam de recente decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou, na ADC 49/RN, a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos de lei complementar que previam a incidência do ICMS nas transferências de bens entre filiais da mesma empresa.

O julgamento da ADC 49/RN e a modulação de efeitos pelo STF

2 de maio de 2023

Por Marcos Correia Piqueira Maia, Michel Hernane Noronha e Thales Maciel Roliz

Em sessão realizada no dia 19/4/23, o Plenário do STF proclamou o tão aguardado resultado dos embargos de declaração opostos na ADC nº 49/RN, em que se avaliou a pertinência e a extensão da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar nº 87/96 que previam a incidência do ICMS nas transferências de bens entre filiais da mesma empresa.

A Corte Suprema, diante do acolhimento parcial dos embargos de declaração, modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos do voto do ministro Edson Fachin, para que a decisão somente passe a ter eficácia em 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais que estavam pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento do acórdão que analisou o mérito do tema (4/5/2021). Determinou-se, ainda, que exaurido o prazo sem que os estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito de os sujeitos passivos transferirem tais créditos [1].

Muitas são as consequências do julgamento, especialmente no que tange ao aproveitamento e à transferência de créditos, o que, inclusive, será objeto de debate no âmbito do Congresso Nacional [2] (ou, até mesmo, em segundos embargos de declaração a serem opostos na ADC nº 49/RN).

Neste sucinto artigo, iremos abordar apenas um efeito negativo que a referida decisão aparenta ter gerado ao deixar desprotegido justamente o grupo de contribuintes que confiou na jurisprudência pacífica do STF e do STJ sobre o tema e, em função disso, decidiu por interromper o destaque do ICMS nas operações de transferência de bens entre filiais (internas e interestaduais), sem prévia ação judicial.

O histórico jurisprudencial até o julgamento de mérito da ADC nº 49/RN pelo Plenário do STF
Como se sabe, as transferências de bens entre estabelecimentos do mesmo sujeito passivo não devem ser tributadas pelo ICMS, haja vista que o mero deslocamento físico de materiais não configura o fato gerador do imposto.

O tema vem sendo objeto de debate há décadas, tendo o STJ, em agosto de 1996, editado a Súmula nº 166 para pacificar a questão.

Pouco após a edição da Súmula nº 166/STJ, sobreveio a publicação da Lei Complementar nº 87/96, que, em seu artigo 12, I, previu que o fato gerador do imposto ocorreria no momento da saída da mercadoria, “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, o que deu ensejo a certa oscilação da jurisprudência quanto à aplicabilidade da Súmula nº 166/STJ aos fatos geradores posteriores à LC nº 87/96.

Ocorre que, em agosto de 2010, o STJ voltou a consolidar o seu posicionamento sobre a matéria. De fato, já sob a égide da LC nº 87/96, a 1ª Seção do STJ apreciou o Recurso Especial nº 1.125.133/SP — submetido à sistemática dos recursos repetitivos — e confirmou a orientação contida na Súmula nº 166/STJ.

Esse também é o entendimento histórico do STF que, no julgamento do AI 682.680 AgR, do ARE 769.582 AgR, do ARE 764.196 AgR, por exemplo, reconheceu a inconstitucionalidade da exigência do ICMS nas simples transferências de bens entre filiais (sejam internas ou interestaduais).

A jurisprudência reiterada do STF, inclusive, foi confirmada pelo Plenário da corte em sede de repercussão geral, no julgamento do ARE nº 1.255.885, em 15/8/2020 (Tema nº 1.099/STF [3]).

Poucos são os temas tributários que têm uma linha jurisprudencial tão pacífica quanto esse. Nada obstante, entrou em cena a ADC nº 49/RN, proposta pelo governador do Rio Grande do Norte, como a “cartada final” dos estados na tentativa de reverter o posicionamento da Suprema Corte. O mérito do caso foi apreciado pelo STF em abril de 2021 e, como já era esperado, chancelou-se o entendimento anterior. A ação direta foi, portanto, julgada improcedente à unanimidade.

Ocorre que o estado do Rio Grande do Norte, ao vislumbrar os possíveis impactos que uma declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc poderia gerar sobre todas as operações de transferência realizadas nos últimos anos, decidiu opor embargos de declaração para requerer a modulação do decisum.

O pedido de modulação de efeitos foi acatado e, após quase dois anos de debates, o STF promulgou o resultado do julgamento.

A modulação de efeitos na ADC nº 49/RN
De acordo com a fundamentação extraída do voto do ministro Edson Fachin, duas foram as razões primordiais que justificaram a modulação de efeitos:

a) A proteção a determinado grupo de contribuintes que, a seu ver, sairia lesado com a decisão proferida na ADC nº 49/RN, especialmente aquele que recebeu bens em transferências interestaduais tributadas, bem como aquele que goza de benefícios fiscais que pressupõem, igualmente, a realização do destaque do ICMS nas transferências entre filiais [4]; e

b) Evitar a chamada “macrolitigância”, uma vez que o Judiciário seria inundado com ações judiciais visando revisar as incontáveis operações de transferência realizadas nos últimos anos [5], o que poderia gerar um grande prejuízo para a Fazenda Pública.

Com base nessas considerações, o ministro Edson Fachin propôs a modulação dos efeitos do julgamento de mérito da ADC nº 49/RN, nos seguintes termos:

“No cenário de busca de segurança jurídica na tributação e equilíbrio do federalismo fiscal, julgo procedentes os presentes embargos para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos.”

É louvável que o Supremo Tribunal Federal tenha se preocupado com as consequências de sua decisão. Parece-nos, contudo, que a modulação realizada se encontra incompleta.

Isso porque, ao propor a eficácia pró-futuro do decisum a partir do exercício financeiro de 2024, resguardando-se os processos administrativos e judiciais pendentes até a data da publicação da ata de julgamento da decisão de mérito, e garantindo a transferência dos créditos acumulados, a Corte Suprema:

a) Protegeu os contribuintes que destacavam regularmente o ICMS em suas transferências entre filiais, especialmente as de caráter interestadual, de forma a evitar que os estados glosem os créditos dos estabelecimentos que receberam os bens tributados;

b) Blindou os contribuintes contra eventual tentativa de glosa dos créditos de ICMS escriturados pelos estabelecimentos que remeteram bens a outras filiais [6]. Afinal, no momento em que o STF afirmou, na ADC nº 49/RN, que as operações de transferência não são tributadas, os estados poderiam entender que lhes caberia glosar os créditos tomados quando da aquisição dos bens que foram objeto das subsequentes operações de transferência, em função do disposto no art. 155, §2º, II, “b”, da Constituição;

c) Garantiu que contribuintes com medidas judiciais prévias não se submetessem à incidência do imposto nas operações de transferência; da mesma forma, garantiu a restituição do indébito para os contribuintes que já tinham formulado o pedido até a publicação da ata de julgamento do mérito da ADC/49/RN, seja na esfera judicial ou administrativa; por fim, resguardou os entes estaduais contra pedidos de restituição ainda não apresentados (na linha do cenário da “macrolitigância” mencionado pelo ministro Fachin), visando preservar as contas públicas.

Frente a essas considerações, pode-se perceber, dentro do rol de contribuintes que foram “protegidos” pela modulação de efeitos, que um único grupo não foi por ela albergado, qual seja: aqueles que confiaram na jurisprudência histórica do STF — cujo ponto máximo foi o julgamento do ARE nº 1.255.885 na sistemática de repercussão geral (Tema nº 1.099/STF) — e que, em função disso, pararam de destacar o ICMS nas notas fiscais que acobertavam as transferências de bens entre as suas filiais, internas e interestaduais, sem o ajuizamento de prévia ação judicial.

Ou seja, os agentes que não realizaram o destaque de ICMS sobre suas operações de transferência e não possuíam medida judicial ajuizada antes de abril de 2021, estão agora, em razão da modulação de efeitos, sujeitos à cobrança do imposto, acrescida de multas e juros moratórios. Não há dúvidas de que a omissão contida na modulação de efeitos causa um efeito perverso sobre esse grupo de contribuintes.

É irônico verificar que a referida modulação, por um lado, protegeu os estados que desrespeitavam abertamente a jurisprudência e exigiam o pagamento do ICMS indevido, e, de outro, deixou aqueles contribuintes que seguiram a orientação do tribunal sujeitos a futuras cobranças por parte desses mesmos entes estaduais.

A situação é delicada, haja vista que tais contribuintes jamais poderiam ser submetidos a situação de tamanha vulnerabilidade; diz-se isso porque a interrupção do destaque do ICMS nas operações de transferências, sem medida judicial prévia, decorreu justamente do comando emanado pelo Plenário do STF no ARE nº 1.255.885, que, como já dito, foi julgado em sede de repercussão geral.

Esse é o ponto fundamental: desde o julgamento do Tema nº 1.099, a Corte Constitucional pôs um ponto final na discussão, uma vez que o julgamento ocorreu sob a sistemática de repercussão geral, a qual, desde que foi instituída pela EC nº 45/04, vem estimulando o fenômeno da chamada “abstrativização” do controle difuso de constitucionalidade, fato que foi reconhecido pelo próprio STF no julgamento do RE nº 955.227 (Tema 885 [7]) e do RE nº 949.297 (Tema 881).

Nos mencionados julgados, o STF deixou claro que o conteúdo do julgamento realizado nesse regime constitui verdadeira norma jurídica, capaz, inclusive, de fazer cessar automaticamente a eficácia da coisa julgada que envolva relações jurídico-tributárias de trato continuado (segundo a posição do ministro Fachin no RE nº 949.297, “os efeitos da decisão proferida em repercussão geral equivalem àquela proferida em sede de controle abstrato: eficácia erga omnes e vinculante“).

Sendo assim, não deveria haver mais dúvidas quanto ao tratamento tributário que precisaria ser dado às transferências de bens, o que foi respeitado por muitos agentes do mercado.

Portanto, vê-se que é manifesta a violação à segurança jurídica na situação aqui relatada, de modo que seria de vital importância que o STF revisitasse os termos da modulação de efeitos para garantir que essa parcela de contribuintes não se veja, agora, diante de múltiplas exigências de ICMS. Se a ideia é evitar a “macrolitigância” fiscal, o direcionamento desse caso precisa ser prontamente ajustado.

Notas:

[1] Diante dos múltiplos votos que foram apresentados durante o julgamento, é possível que o resultado ainda seja questionado por meio de novos embargos de declaração.

[2] Tratando da matéria, no Senado Federal, tramita o PLS nº 332/18; na Câmara dos Deputados, o PLP nº 148/21.

[3] “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.” (ARE nº 1.255.885)

[4] “Por fim, quanto ao pedido da modulação dos efeitos temporais da decisão considero que presentes razões de segurança jurídica e interesse social (art. 27, da Lei n. 9.868/1999) que justifiquem eficácia pró-futuro da decisão preservando-se as operações praticadas e estruturas negociais concebidas pelos contribuintes, sobretudo, aqueles beneficiários de incentivos fiscais de ICMS no âmbito das operações interestaduais.

[5] “Ademais, tem-se ainda que considerar, conforme destacado pela própria unidade federativa embargante, o ‘risco de revisão de incontáveis operações de transferências realizadas e não contestadas no quinquênio que precede a prolação da decisão embargada’; o que ensejaria um indesejável cenário de macrolitigância fiscal.”

[6] Essa questão específica, inclusive, foi objeto dos embargos de declaração opostos na ADC nº 49/RN, quando os estados deixaram claro que, em decorrência da declaração de inconstitucionalidade do ICMS sobre transferências entre filiais, passariam a exigir o estorno dos créditos decorrentes da entrada da mercadoria na filial de origem, enquanto os estados de destino exigiriam o ICMS integral nas subsequentes saídas, sem direito a crédito. Veja-se o seguinte trecho dos aclaratórios opostos pelo Estado do Rio Grande do Norte:

“Em não havendo determinação contrária na legislação — e não o há —, a decisão proferida neste feito autoriza o Estado de origem a exigir o estorno dos créditos das operações anteriores àquela não sujeita à incidência do tributo, autorizando o Estado de destino, de igual modo, a exigir o ICMS integral (sem crédito) nas operações de saída internas de mercadorias“.

[7] “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.

Marcos Correia Piqueira Maia é doutorando em Direito Tributário na Universidade Complutense de Madrid e sócio do escritório Maneira Advogados.

Michel Hernane Noronha é mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e sócio do escritório Maneira Advogados.

Thales Maciel Roliz é mestrando em Direito Tributário no IBDT-SP e sócio do escritório Maneira Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2023

https://www.conjur.com.br/2023-mai-02/opiniao-julgamento-adc-49rn-modulacao-efeitos

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