Em artigo publicado no site Energia Hoje, da Revista Brasil Energia, os sócios Lucas Mayall e Luis Eduardo Maneira analisam a cobrança pelo uso de faixa de domínio nas rodovias federais contra concessionárias de energia pela passagem de suas linhas de transmissão.

Uma bomba inflacionária nas mãos do STF

Lucas Mayall e Luis Eduardo Maneira, do Maneira Advogados, analisam em artigo a cobrança pelo uso de faixa de domínio contra concessionárias de energia

Por Lucas Mayall  e  Luis Eduardo Maneira

Em meio à impressionante variedade de processos de enorme repercussão política e econômica que orbitam a pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), quase nada tem sido falado a respeito de uma discussão de potencial avassalador sobre a economia nacional: a manutenção da gratuidade de que sempre dispuseram as concessionárias de energia elétrica para utilizar as faixas de domínio de rodovias federais para a passagem de suas linhas de transmissão.

Tomando-a equivocadamente por uma mera disputa setorial, poucos se dão conta do estrago que uma autorização para que as concessionárias de rodovias federais criem uma cobrança contra as distribuidoras de energia teria sobre a tarifa de energia e, por consequência, os custos de produção em geral.

Para que se ponha em perspectiva o impacto da cobrança cuja criação vem sendo chancelada por alguns tribunais, o repasse da cobrança aos consumidores de energia elétrica representaria, sozinho, um aumento de quase 8% na tarifa de energia, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, que tomou por base uma das principais disputas em curso no país sobre o tema. Trata-se de um percentual que representa quase o dobro da inflação projetada para o ano de 2023, segundo o último boletim Focus e que, por sua vez, terá um forte efeito inflacionário, tendo em vista o impacto do custo de energia em toda a cadeia produtiva.

Para efeitos de comparação, a recente redução da alíquota do ICMS por meio da edição de Lei Complementar nº 194/2022 e seus respectivos atos regulamentares gerou uma redução de 6,5%, em média, sobre a tarifa de energia, segundo o Ministério de Minas e Energia.

Em outras palavras, a cobrança pretendida pelas concessionárias de rodovia tem um impacto substancialmente maior na tarifa de energia do que uma das mais drásticas medidas governamentais de nossa história recente, adotada como uma resposta emergencial diante de cenário sem precedentes, no qual duas catástrofes mundiais tiveram lugar de forma quase simultânea: a pandemia de Covid-19 e a Guerra na Ucrânia.

A destinação do montante adicionado à conta de luz da população é igualmente preocupante. Conquanto invoque-se justamente o princípio da modicidade tarifária para sustentar a possibilidade da cobrança – que, numa visão míope, se aplicaria somente ao pedágio, mas não à conta de luz –, a verdade é que apenas uma fração da receita bruta obtida pelas concessionárias de rodovia seria revertida em modicidade no preço do pedágio, nos termos do art. 4º da Resolução nº 2.552/2008 da ANTT, que trata da destinação das assim chamadas receitas alternativas em concessões de rodovia.

Com isso, as concessionárias de rodovia federal desfrutariam de um notável reforço em seus lucros à mercê de todos os consumidores do país. Isso tudo por um uso de sua faixa de domínio que não lhes ocasiona qualquer custo adicional a justificar a cobrança, uma vez que é a própria concessionária de energia elétrica que cuida da manutenção da linha de transmissão, tampouco impossibilita outros aproveitamentos econômicos do local, tal como a instalação de estabelecimentos comerciais. Se, por um lado, apenas parte da receita das concessionárias de rodovia seria destinada a reduzir o valor do pedágio, por outro lado, nem é necessário dizer que o custo gerado às distribuidoras de energia seria integralmente repassado aos consumidores em sua conta de luz e, posteriormente, numa infinidade de bens e serviços que têm na energia elétrica um de seus principais custos de produção.

A temeridade, contudo, não se limita aos aspectos econômicos da disputa. A gratuidade do uso da faixa de domínio de rodovias, ferrovias, dutos e outros bens públicos por parte de concessionárias de energia elétrica constitui um estado de coisas que impera sem sobressaltos há décadas, sob a vigência do Código de Águas, editado em 1934, e do Decreto nº 84.398/80, que regulamentou o art. 151 do aludido diploma, expressamente prevendo a gratuidade da “ocupação de faixas de domínio de rodovias (…) por linhas de transmissão, subtransmissão e distribuição de energia elétrica de concessionários de serviços de públicos de energia elétrica” em seus arts. 1º e 2º.

A garantia de gratuidade da faixa de domínio de rodovias prevista na legislação desempenhou papel fundamental no desenvolvimento do setor elétrico nacional, ao impedir a oneração desnecessária do serviço e promover uma organização racional do solo, sem que as linhas de transmissão evitassem se sobrepor às estradas para evitar custos.

Serenando os prospectivos investidores com a gratuidade do uso da faixa de domínio pelas linhas de transmissão de energia elétrica, o Estado foi bem-sucedido nas muitas rodadas de concessões promovidas notadamente a partir da metade da década de 1990, que angariaram os recursos e o conhecimento técnico para que a infraestrutura de energia elétrica nacional fosse expandida a ponto de se conseguir levar luz — e, com ela, saúde, cidadania e progresso — aos cantos mais ermos de nosso país continental.

Intacto até então, esse quadro sofreu as primeiras perturbações a partir de 2010. Em tal momento, surgiram no âmbito do Superior Tribunal de Justiça os primeiros julgados em que se conferia ao art. 11 da Lei de Concessões Públicas (Lei nº 8.987/95) — que, naquele momento, já vigorava há 15 anos — uma interpretação surpreendente, em especial se considerada a redação do aludido dispositivo.

Com efeito, embora o dispositivo legal apenas preveja de forma genérica a possibilidade de serem criadas receitas alternativas ao pedágio, alguns julgadores passaram a admitir a possibilidade de que concessionárias de rodovias cobrem pelo uso de faixa de domínio por parte de concessionárias de energia elétrica, enxergando no singelo dispositivo uma impensável revogação dos arts. 1º e 2º do Decreto nº 84.398/80 e do Código de Águas e uma autorização para que o Poder Concedente atribua a um concessionário o poder para praticar justamente o ato proibido pelos referidos diplomas.

Como muito bem reconheceu o ministro Luiz Fux no julgamento da ADI 3.763/RS, trata-se de inobservância flagrante do clássico método de solução de antinomias segundo o qual a norma especial derroga a norma geral, ainda que esta seja mais recente do que aquela, insculpido no art. 2º, §2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42).

Até o momento, o Supremo Tribunal Federal enfrentou desdobramentos da questão central debatida, afastando, por exemplo, a possibilidade de cobrança por parte de entes ou concessionárias estaduais contra federais, com base em invasão de competência federal. Todavia, ainda não foi decidido pela Corte se uma concessionária federal de rodovia pode cobrar de uma concessionária federal de distribuição de energia elétrica pela passagem da linha de transmissão pela faixa de domínio, este, sim, o grande debate a ser travado.

A população brasileira, destinatária final do pesado encargo que decorreria de um entendimento favorável às concessionárias de rodovia, tem razões para ficar otimista com as perspectivas no STF. Em julgamentos de temas similares, o Tribunal vem adotando posições que sugerem a vedação da instituição de uma cobrança pelo uso de bem público por uma concessionária federal contra outra.

São exemplos disso o entendimento pela inconstitucionalidade da cobrança pelo uso de faixa domínio por parte de entes estaduais, a constitucionalidade do direito de passagem conferido pelo art. 12 da Lei Geral de Antenas às operadoras de telecomunicações e o julgamento de que é inconstitucional a cobrança de taxa pelo uso de espaços públicos dos municípios por distribuidoras de energia elétrica (Recurso Extraordinário 581.947/RO). Inclusive, nesses julgados, alguns ministros fizeram considerações contundentes que certamente serão invocadas quando a matéria for apreciada pelo STF.

Ainda assim, não há como deixar de se angustiar com a possibilidade de que um julgamento ou mesmo sua indefinida postergação acarretem num aumento tão brutal do custo de vida e de produção no Brasil justamente num momento especialmente sensível da economia nacional e global.

Por certo, não se trata de um tema que possa continuar desapercebido.

Lucas Mayall e Luis Eduardo Maneira são sócios do escritório Maneira Advogados

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